Por Edson José Travassos Vidigal
Roteiro:
1.
Objetivo
2.
Palavras chaves ao entendimento
do empirismo de John Locke
3.
Introdução
4.
Algumas considerações sobre John
Locke
5.
Algumas considerações sobre as
Idéias em Locke
6.
Algumas considerações sobre o
Conhecimento em Locke
7.
Algumas considerações sobre a
Verdade em Locke
8.
Algumas considerações finais
9.
Bibliografia
1- Objetivo
O presente trabalho se propõe a tecer considerações introdutórias ao
pensamento empírico de John Locke, visando um primeiro entendimento da
concepção deste filósofo acerca do que seja “a verdade”.
Para tanto, adota como referência à investigação que se propõe, o
livro IV- “Do conhecimento e da probabilidade”, da obra “ Ensaio acerca do entendimento humano” de
autoria de Locke.
Cabe ressaltar que se trata de um trabalho de natureza expositiva,
propedêutico ao pensamento de Locke. Apenas uma primeira leitura de sua
concepção sobre o tema. Leitura essa que, não tendo a pretensão de ser original
ou exaustiva; busca, antes, despertar e fomentar o interesse pela obra deste
importante pensador inglês.
2- Palavras
chaves ao entendimento do empirismo de
John Locke
Idéia, sensação, reflexão, modo,
substância, relação, conhecimento, sinal, verdade, proposição, juízo,
abstração, palavra, existência.
3- Introdução
Tendo em
vista o objeto de nossa empresa, investigar sobre “o problema da verdade em
Locke”, cabe a nós, antes de mais nada, especificarmos o que estamos
procurando.
Analisando
nosso tema, começamos por questionar o que seria “o problema da verdade”.
A teoria do
conhecimento tradicional toma o problema da verdade como o questionamento
acerca de como podemos saber se um determinado juízo é verdadeiro ou não. Essa
questão é chamada de “o critério de verdade”. E, sem sombra de dúvida, para
resolvermos esta questão, precisamos antes ter uma definição clara do que seja
“verdade”.
Temos então
esclarecido o objeto de nossa investigação, que é entendermos o que é a verdade
para John Locke e qual é o critério que este filósofo inglês adota para
considerar um juízo verdadeiro, ou não.
Para
obtermos sucesso em nossa missão, é necessário que façamos algumas
considerações prévias de índole introdutória, sem as quais se tornará difícil o
entendimento do que seja a verdade para Locke, ou de qual é o critério de
verdade que ele adota. É necessário contextualizar, em sua vida e obra, em seus
pensamentos, em sua forma de ver o mundo, as respostas que ele nos dá a tais
questionamentos.
4- Algumas
considerações sobre John Locke
Nascido em 29 de agosto de 1632, em Pensford, vilarejo do Sommerset,
perto de Bristol, John Locke era filho de uma família de comerciantes. Sofria
de problemas respiratórios, os quais, de origem familiar, já haviam
comprometido a saúde de sua mãe e de seu irmão, ambos falecidos com
tuberculose, quando John Locke ainda era jovem. A preocupação com sua saúde,
que sempre foi precária, o acompanhou por toda a vida.
Locke viveu em uma Inglaterra conturbada por guerras civis. Seu pai
se alistou no exército do Parlamento e, graças à interferência de seu superior,
o Coronel Popham, Lock estudou como bolsista na Universidade de Westminster e,
posteriormente, também como bolsista, em Oxford no “Christ Church College”, o
mais famoso daquela universidade.
Lá, estudou a filosofia de Aristóteles, a única ensinada em Oxford.
Foi diplomado Bacharel em Artes e lecionou grego, retórica e filosofia moral
por algum tempo.
Após esse período, se dedicou
à medicina. Foi médico e conselheiro de Lord Ashley, conde de Shaftesbury, que
o contratou após Locke lhe ter salvado a vida por meio de uma cirurgia.
A conturbação política de seu tempo e a sua saúde debilitada o
levaram a viver entre a França, a Inglaterra e a Holanda. Por fim,
estabeleceu-se definitivamente em seu País natal até a sua morte, em 28 de
setembro de 1704, “enquanto Lady Masham lhe fazia uma leitura.” [1]
Em seus 72 anos de vida, produziu várias obras, dentre as quais se
destacam: Dois tratados sobre o Governo, Carta sobre a tolerância, Elementos de
filosofia natural e Ensaio sobre o entendimento humano.
É considerado o fundador do empirismo moderno, corrente filosófica
que prega ser a experiência a única fonte do conhecimento humano. Não existem
idéias inatas. A consciência cognoscível tira todos os seus conteúdos da
experiência. O espírito humano nasce vazio, como uma tábula rasa, e, no
decorrer de suas experiências, vai preenchendo este vazio com conhecimento.
Toda a sua obra é coesa e coerente, caracterizando-se
fundamentalmente no empirismo que defende. Mas é no Ensaio acerca do entendimento
humano que Locke expõe brilhantemente suas idéias acerca de seu empirismo e
suas conseqüências na área da teoria do conhecimento.
O “Ensaio sobre o entendimento humano” se divide em quatro livros: O
primeiro nega os princípios e as idéias inatas, o segundo trata das idéias, o
terceiro das palavras e o quarto do conhecimento e da probabilidade.
5- Algumas
considerações sobre as idéias em Locke
“Todo homem tem consciência de
que pensa, e que quando está pensando sua mente se ocupa de idéias”[2]. Assim Locke inicia sua investigação sobre as idéias no Livro II de
sua obra. Deixa claro que, já que a mente é uma folha em branco, como já havia
provado no livro anterior, as idéias necessariamente deveriam vir de algum
outro lugar, que não da própria mente. E este lugar é a experiência. Todo o
nosso conhecimento está fundado na experiência, seja ela experiência externa,
sensorial, seja ela interna, reflexiva. Todas as nossas idéias derivam de uma
dessas duas formas de experiência.
Segundo Locke, existem idéias simples e idéias complexas. As idéias
simples se dividem em idéias de sensação, de reflexão e de sensação e de
reflexão. Por sua vez as de sensação se subdividem em “de um só sentido”
(qualidades secundárias) e “de diversos sentidos” (qualidades primárias). As
idéias complexas se dividem em modos, substâncias e relações. Os modos se
dividem em simples e mistos, sendo os simples subdivididos em “dos objetos de
sensação” e “dos objetos de reflexão”. As substâncias se subdividem em
corpóreas, espirituais e Deus.
Pode-se melhor visualizar tais distinções no seguinte esquema[3]:
As idéias simples nascem da experiência externa sensorial, como a
idéia de quente, e da experiência interna, a reflexão, como no caso da idéia de
vontade. Podem ainda nascer da sensação e da reflexão, como a idéia de
causalidade.
Já as idéias complexas, são compostas por idéias simples, como a
idéia de ouro, que reúne diversas idéias simples como as de ser amarelo,
brilhante, maleável etc.
Locke sistematiza todo um processo de conhecimento e geração de
idéias, bem como as classifica e as analisa no decorrer do Livro II. Mas o que
nos interessa neste estudo é que elas se constituem na representação da
realidade em nossa mente. A realidade não entra em contato direto com nossa
mente, ao contrário, ela entra em contato mediante os sentidos, que geram
idéias. Mesmo as idéias geradas por reflexão são, em última análise,
provenientes de nossos sentidos, pois, a reflexão é feita baseada em idéias
originadas de nossos sentidos. Assim, nossa mente não é capaz de ter contato
com nada além das idéias, que são representações das sensações obtidas por
nossos sentidos.
6- Algumas
considerações sobre o conhecimento em Locke
O conhecimento, para Locke, “nada
mais é que a percepção da conexão e acordo, ou desacordo e rejeição, de
quaisquer de nossas idéias” [4]. Locke afirma que, já que os únicos objetos que a mente pode
contemplar de forma imediata são as idéias, sejam as obtidas pela sensação,
sejam as obtidas pela reflexão, é evidente que o nosso conhecimento só pode se
relacionar com elas. Assim, o conhecimento existe quando há a percepção da
conexão ou da rejeição de determinadas idéias. Se afirmamos que branco não é
preto, o que fazemos nada mais é do que percebermos a discordância entre essas
duas idéias, a rejeição entre elas. Locke chama atenção para o fato de que,
apesar de podermos imaginar, supor, advinhar, ou acreditar em determinados
pensamentos, isso não se trata de conhecimento. Ao contrário, estamos dele
distante se não houver a percepção da relação entre idéias acima exposta.
De fato, se através de nossos sentidos é que vemos e conhecemos o
mundo exterior a nós, e o resultado dessa mediação se apresenta na forma de
nossas idéias; se, ao nascermos, somos uma folha de papel em branco onde serão
impressas as idéias obtidas pelos nossos sentidos e, ainda, outras, obtidas
pela nossa reflexão; nada mais coerente do que perceber que o nosso
conhecimento está restrito ao que está escrito em nossa folha de papel, em
nossa mente. E o que está escrito em nossa folha de papel são as idéias, os
dados que dispomos sobre nós e o mundo exterior. Assim, sendo as idéias os
dados que dispomos imediatamente; o processamento desses dados, as relações que
criarmos ou identificarmos entre elas, é que se constitui em nosso
conhecimento.
Locke, objetivando explicar melhor o que seria este “ acordo ou
desacordo” entre idéias, divide-os em quatro tipos:
1-
Identidade ou diversidade
2-
Relação
3-
Coexistência ou conexão
necessária
4-
Existência real
O primeiro tipo de “acordo ou desacordo”, qual seja, a identidade
ou diversidade, constitui-se no primeiro ato da mente, que ocorre no
momento da percepção das idéias, quando, “na
medida em que as percebe, sabe o que cada uma é, e por este meio percebe também
suas diferenças, e que uma não é a outra”[5]. Locke enfatiza que este processo é tão absolutamente necessário
que, sem ele, não poderia haver nenhum conhecimento, nenhum raciocínio, nenhuma
investigação, nenhuma imaginação e nenhum pensamento distinto. Diz ainda que
este primeiro “acordo ou desacordo” é sempre percebido pela mente à primeira
vista.
Trata-se da percepção da identidade das idéias, ou, se analisarmos
bem, da criação das próprias idéias. Tal percepção se faz justamente pelo
processo de identificação do que é igual e do que é diferente. A própria
identidade nasce da auteridade. Sem existir algo diferente, não se pode
conceber uma identidade, que é a referência para o diferente. Sem o diferente,
não faz sentido existir a referência. Assim, é absolutamente imprescindível que
se encontre as diferenças a fim de que se identifique algo, que se crie a sua
identidade. E isso é intrínseco à concepção de cada idéia, pois, sem essa
operação não existiriam idéias, mas apenas um aglomerado de sensações
indistintas, das quais não seria possível nem mesmo o ato da reflexão e
consequente criação de outras idéias.
Podemos arriscar em concluir
que a percepção de “acordo ou desacordo” chamada por Locke de “identidade ou
diversidade” é instintiva e intuitiva, e faz parte, mesmo, do nascimento das
idéias em nossa mente. Além, é claro, de se constituir, desde já, em meio de
futuras relações entre idéias com vistas à formulação de conhecimento. Neste
momento, cabe uma reflexão: Já que a formação das próprias idéias, o nascimento
de cada idéia, já se constitui em operação de juízo, em ato de distinguir a fim
de identificar, usando a terminologia de Locke, em percepção do “acordo e
desacordo” de “identidade ou diversidade”, então, seguindo o pensamento de
Locke, não seria correto afirmar que as próprias idéias já se constituem em
conhecimento? Claro que para respondermos afirmativamente a esta questão
teríamos de interpretar a definição de conhecimento de Locke de forma mais
ampla, já que, como visto, para Locke o conhecimento “nada mais é que a percepção da conexão e acordo, ou desacordo e
rejeição, de quaisquer de nossas idéias”[6] (grifo nosso).
O segundo tipo de “acordo e desacordo” que a mente percebe, segundo Locke,
é a relação. “Uma vez que todas as idéias
distintas devem ser eternamente conhecidas como não sendo as mesmas, e como
sendo universal e constantemente negadas umas das outras, não poderia haver
nenhum meio de chegar a um conhecimento positivo, se nós não pudéssemos
perceber nenhuma relação entre as nossas idéias, nem descobrir o acordo ou
desacordo que elas mantêm umas com as outras nos diferentes modos de que o
espírito se serve para as comparar.”[7] (grifo nosso)
Trata-se de criar
relações entre as idéias, usando um determinado critério pré-definido por nossa
mente para este fim. Por exemplo, podemos comparar a idéia de sol com a idéia
de ouro, tomando como critério a cor. Assim, dizemos que o ouro e o sol são
iguais em relação à sua cor. Esta é uma forma de criar uma relação entre as
idéias que é fundada em um determinado aspecto da idéia, não em sua totalidade,
pois, se cada idéia é única e distinta, como já visto, elas não podem ser
iguais entre si. Todas teriam que ser diferentes, e essa seria a única relação
que poderia existir entre elas. A partir da hora em que se estabelece um
critério para a relação, como a cor, no exemplo dado, cria-se a possibilidade
de existência de outras infindáveis relações entre as idéias, ou, sendo mais
preciso, entre determinados aspectos das idéias.
O terceiro tipo de “acordo e desacordo” a ser encontrado em nossas
idéias, diz Locke, é a coexistência ou
não coexistência, no mesmo objeto. E Locke explica: “... quando nos manifestamos acerca do ouro, que é fixo, nosso conhecimento
desta verdade não comporta mais que
isto, que fixidez, ou um poder para permanecer no fogo sem ser consumido. Isto importa numa idéia que sempre acompanha e é unida a este tipo
particular de amarelo, peso, fusibilidade, maleabilidade e solubilidade em aqua
régia, que faz nossa idéia complexa, designada pela palavra “ouro” ”[8]
Parece que Locke se refere à coexistência ou não de propriedades do
objeto, de forma a defini-lo, e essa definição do objeto, através da percepção
sobre a coexistência ou não de determinadas características, constituiria-se em
conhecimento.
Finalmente, o quarto tipo de “acordo e desacordo” formulado por Locke
com o objetivo de tornar claro o processo do conhecimento, é a Existência real atual concordando com
qualquer idéia.
Parece que a existência real seria a relação entre a idéia e a
realidade. Neste ponto, ao invés de desenvolver o quarto tipo de “acordo e
desacordo”, Locke prefere concluir o tópico citando exemplos: “Assim, “azul não é amarelo” é identidade.
“Dois triângulos sobre bases iguais entre duas paralelas são iguais” é relação.
“Ferro é suscetível de impressões magnéticas” é coexistência. “Deus é” é
existência real. Embora identidade e coexistência sejam realmente nada mais que
relações, apesar disso, são meios tão peculiares de acordo e desacordo de
nossas idéias que bem merecem ser considerados tópicos distintos, e não sob a
relação em geral.”[9]
Traçados tais aspectos
primeiros sobre o conhecimento para Locke, encontramo-nos aptos a seguir ao próximo passo.
7- Algumas
considerações sobre a verdade em Locke
“ O que é a verdade? Eis uma
pergunta antiga de séculos; e como toda a humanidade a procura, ou pretende
procurar, não pode deixar de ser digno do nosso cuidado examinar em que ela
consiste e assim familiarizarmo-nos com a sua natureza e observar como o
espírito a distingue da falsidade”[10](grifos nossos)
A proposta de Locke no início do capítulo entitulado “A verdade em
geral”[11], é justamente averiguar em que a verdade consiste e, deste modo,
adquirir familiaridade com a sua natureza. Locke se propõe, ainda, a observar
de que modo a mente distingue a verdade da falsidade. Como que soubesse de
nosso anseio e de nossa busca, Locke finalmente nos brinda com uma proposta
irrecusável, a de nos responder diretamente a pergunta que, desde o início,
norteia nossa peregrinação: “O que é a verdade para John Locke, e qual o
critério de verdade que ele utiliza?”
Mas por que não fomos direto ao ponto desde o início de nossa
empresa?
Simplesmente porque
não podíamos nos furtar da companhia de nosso esguio filósofo inglês e de suas
idéias esclarecedoras tanto ao espírito humano e seu entendimento, quanto à
nossa investigação e ao nosso entendimento.
“Parece-me, então que a
verdade não é outra coisa, segundo a significação própria da palavra, senão
a união ou a separação de sinais, conforme as coisas significadas por elas
concordem ou discordem entre si. A união ou separação de sinais aqui
significada é o que nós chamamos por outro nome: proposição; de maneira
que a verdade pertence propriamente só às proposições. Há duas espécies delas,
a saber: mentais e verbais; como também há duas espécies de sinais
de que nos servimos vulgarmente, a saber: as idéias e as palavras.”[12] (grifos nossos)
A primeira questão que
nos deparamos é: O que são os “sinais”? Locke nos diz que existem dois tipos de
sinais, as palavras e as idéias. Analisando sua obra, podemos afirmar que os
“sinais” são representações. Sua característica geral é a função significadora.
Na verdade, as palavras, para Locke, não passam de representações das idéias. E
as idéias, por sua vez, são representações das “coisas”. Assim, as palavras são
“sinais” das idéias, que são “sinais” das coisas.
Mas há diferenças entre estes sinais. A maior e mais importante
diferença é que as palavras são representações convencionais das idéias, por isso elas não significam
necessariamente o conteúdo das idéias. Já as idéias não são representações
convencionais das coisas, mas sim, representações naturais das coisas. De certa
forma são universais, pois todos tendemos a receber praticamente as mesmas
sensações dos objetos (É claro que tais afirmações podem ser questionadas, mas
tais questionamentos não se fazem relevantes à nossa presente investigação). O
surgimento das idéias é algo inerente ao processo cognitivo, é intuitivo e
imediato, ao contrário do surgimento das palavras, que é algo construído
mediante outros elementos e convenções externas. Se as palavras fossem
diretamente ligadas às idéias de forma não convencional, todos nasceríamos
falando a mesma língua. Mas não é isso o que, de fato, acontece.
Daí se percebe que; se podemos suspeitar que as idéias não estejam
intimamente ligadas à realidade [13], e podemos ter certeza que as palavras, por sua vez, também não
estão intimamente ligadas às idéias; é evidente que as palavras não guardam relação íntima com a realidade, ao
contrário, estão longe dela, como em uma brincadeira de “telefone sem fio”,
onde a mensagem original vai se deturpando e se perdendo durante o longo
caminho que vai da origem da mensagem ao seu destino.
Voltando à análise da
resposta de Locke sobre o que seria a verdade, ele diz que a união ou separação
dos sinais a que se refere é o que nós chamamos de proposição, e que a verdade
pertence propriamente somente às proposições. Diz ainda que “há duas espécies delas, a saber: mentais e verbais”[14].
À primeira vista parece confuso se ele se refere a dois tipos de verdades ou a
dois tipos de proposições. Mas logo adiante, no decorrer da leitura, percebe-se
que existem dois tipos de proposições, as proposições mentais e as verbais, e
consequentemente existem dois tipos de verdade, a verdade mental, e a verbal,
haja vista que as verdades estão intimamente relacionadas com as proposições.
Locke explica que é
difícil tratar delas separadamente, pois é inevitável, ao tratar das
proposições mentais, fazer-se uso de palavras; e, logo que isso aconteça, tais
proposições mentais passam a ser proposições verbais. Chama a atenção até para
o fato de que a maioria dos homens, senão todos, usam palavras ao invés de
idéias ao formarem seus raciocínios[15].
Na verdade, Locke procura explicar que, apesar de ser difícil se explanar sobre
as proposições mentais, e consequentemente sobre as verdades mentais, elas
existem[16].
Adiante, Locke examina
as duas espécies de proposições:
“ Mas para voltar a considerar em que consiste a verdade, digo que
devemos observar duas espécies de proposições que somos capazes de formar:
Uma, as mentais, onde as idéias são juntas ou separadas no nosso
entendimento, sem o uso das palavras, pelo espírito que percebe ou julga o seu
acordo ou desacordo.
A outra, as verbais, que são as palavras, sinais das nossas idéias,
juntas ou separadas em frases afirmativas ou negativas. E por esta maneira de
afirmar ou negar, estes sinais formulados por sons são, por assim dizer, postos
juntos ou separados uns dos outros. De maneira que uma proposição consiste
em juntar ou separar os sinais; e a verdade consiste em juntar ou separar estes
sinais conforme as coisas que eles significam concordam ou discordam.”[17]
Locke deixa claro o
que seja uma proposição para ele. Uma proposição nada mais é do que juntar ou
separar sinais (idéias ou palavras). Assim, em uma proposição verbal, poderemos
usar as palavras “bola” e “liquido”, que são sinais que representam a idéia
complexa de “bola” e a idéia simples de “líquido”. Então poderíamos montar a
seguinte proposição verbal: “A bola é líquida”. Nossa proposição é justamente a
junção de duas palavras (dois sinais que representam duas idéias). Uma
proposição mental já seria impossível de ser transmitida em um texto[18],
mas, em síntese, seria unir ou desunir duas idéias (sinais dos objetos reais).
Agora que sabemos o
que é uma proposição, finalmente, chegaremos à verdade!
A verdade nada mais é
do que uma proposição onde os seus “sinais” estão juntos ou separados conforme
as coisas que eles representam concordem ou discordem entre si. A proposição
que formulamos, “A bola é líquida”, apesar de ser, sim, uma proposição; não é
uma proposição verdadeira, pois a idéia de “bola” não concorda com a idéia de
“líquido”. A fim de ser verdadeira, teríamos que transformar nossa proposição
em: “A bola não é líquida”.
A verdade acontece
quando a relação (concordância ou discordância – junção ou separação)
apresentada pelos sinais reflete, de fato, a relação entre as coisas que estão
representadas por estes sinais.
Como visto, já que
existem proposições mentais e proposições verbais, existem verdades mentais e
verdades verbais.
“...E quando as idéias são assim juntas ou separadas no espírito,
conforme essas idéias ou as coisas que significam concordam ou não concordam,
isso é o que podemos chamar verdade mental.”[19]
Em outras palavras,
verdade mental é quando a relação feita entre as idéias, pelo espírito,
espelha, de fato, a relação existente entre as coisas na realidade. Ou quando a
relação entre as idéias(sinais) espelha a relação entre outras idéias (objetos
representados por aqueles sinais), no caso de se estar formulando proposições
de idéias acerca de outras idéias.
É importante frisar que as verdades mentais, formadas por proposições
mentais, apesar de serem as mais difíceis de serem identificadas ou
exemplificadas, são as mais simples, pois, para haver uma verdade verbal, basta
que a proposição formada por idéias (proposição mental) espelhe a relação entre
os objetos reais representados pelas idéias em questão. Assim, se eu faço, sem
o auxílio de palavras, a seguinte proposição mental: “Uma [idéia de bola] não é
[ídéia de líquido]”, essa proposição mental é uma verdade mental, pois, efetivamente,
na realidade, o objeto que chamamos de bola não tem a característica que
chamamos de liquidez. É um pouco abstrata demais essa explicação, mas é a
melhor que pudemos dar no momento.
“Mas a verdade das palavras é qualquer coisa mais; é o afirmar ou negar
as palavras umas das outras, consoante as idéias que elas significam concordam
ou discordam; e esta verdade é ainda dupla: ou puramente verbal e inútil (dela falarei no capítulo VIII) ou real e
instrutiva; e é ela que se refere ao
conhecimento real de que falamos.”[20]
As verdades das
palavras são mais complicadas[21].
As palavras, como visto, não necessariamente representam uma existência real.
E, mais, podemos imaginar coisas que não existem na realidade. Assim, posso
imaginar um unicórnio e dizer que “todos os unicórnios são animais”. Esta seria
uma proposição verbal verdadeira, assim como se eu falasse que “todos os homens
são animais”. Elas são igualmente verdadeiras na medida em que seus sinais (no
caso as palavras) foram relacionados coerentemente com as relações apresentadas
de fato entre as idéias por eles representadas(as idéias de unicórnio, de homem
e de animal).
Como visto no exemplo
acima, se a verdade verbal nada mais é do que afirmar ou negar as palavras umas
das outras, consoante as idéias que elas significam concordam ou discordam,
então essa verdade não serve para nada, pois a proposição verbal “todos os
unicórnios são animais” é uma verdade verbal, incontestavelmente. Mas
unicórnios nem ao menos existem! Então o que uma verdade dessas nos vale se não
tem relação alguma com a realidade?
Locke resolve esse
problema explicando que, quanto às verdades das palavras, existem dois tipos:
as verdades puramente verbais, como é o caso da verdade de nosso unicórnio, e
as verdades reais, que acontecem quando as idéias representadas por nossas
palavras em nossa proposição, de fato, guardam relação com a realidade.
“... As proposições contêm verdades reais quando os sinais de que se
compõem estão unidos segundo convém às nossas idéias e quando estas são tais
que nós as sabemos capazes de existir na natureza...”[22]
Esta é a explicação de
Locke para as “verdades reais”. Sem embargos, para haver uma verdade real, é
necessário, primeiro, que as palavras guardem relação com as suas idéias
respectivas; depois, que as relações formuladas por palavras na proposição
verbal guardem correspondência com as relações que existem de fato entre as
idéias representadas por estas palavras; e, por último, mas não menos
importante, que as idéias representadas na proposição verbal sejam tais, que
possamos saber que existam, de fato, na natureza.
Cumpridos todos estes
requisitos, estamos de frente a uma verdade real.
Não satisfeito, Locke
vai além:
“A verdade é o registro em palavras do acordo ou desacordo das idéias
tal como ele é. A falsidade é o registro em palavras do acordo ou desacordo das
idéias diferentemente do que ele é. E até onde estas idéias assim designadas
pelos sons concordarem com os seus arquétipos, só até aí a verdade é real. O
conhecimento dessa verdade consiste em saber quais são as idéias que as
palavras significam e em perceber o acordo ou desacordo destas idéias conforme
é designado por essas palavras.”[23]
Locke, após esclarecer
o que seria a verdade em geral, e, ainda, como fazer a distinção entre a
verdade e a falsidade, continua em sua obra investigando outros aspectos do
conhecimento e outras espécies de verdade além daquelas já estudadas, que
constituem, nas suas palavras, o seu “rigoroso sentido”. Mas tais investigações
se constituem demasiado amplas para caberem em nosso limitado projeto de traçar
considerações iniciais ao seu pensamento, e à sua “verdade”.
8- Algumas
considerações Finais
Como visto, Locke acredita que nascemos como uma folha em branco, sem
nada já impresso. No decorrer de nossas experiências, sejam físicas
(sensoriais), ou sejam mentais, vamos adquirindo impressões[24] em nossa folha em branco.
A essas impressões ele chama de “idéias”. Estas “idéias” são
“sinais”, representações da realidade ou de outras idéias[25]. A idéia de ouro, por exemplo, é uma idéia complexa que deriva de
várias outras simples, como o brilho metálico, a cor amarela, etc. Assim, a
idéia de ouro é um sinal que representa outras idéias simples, que por sua vez,
são sinais que representam as qualidades
do objeto real aqui chamado por nós de
ouro.
Já as palavras são também “sinais”, mas que representam as idéias. As
palavras, ao contrário das idéias, não são naturais, mas conceituais, e por
isso não guardam necessariamente ligação com as idéias.
Para Locke, o conhecimento nada mais é do que a conexão de acordo ou
desacordo entre as idéias, ou, dito de outra forma, a relação que fazemos entre
elas. Ora, se tudo nos provém dos sentidos, e o que os sentidos captam é
convertido em idéias, é evidente que nossa mente não tem contato direto e
imediato com a realidade. Nossa mente entra em contato com a realidade por meio
dos sentidos, que nos mostram a realidade, transformado-a em idéias. Então,
entre nosso espírito e a realidade existem as idéias e os sentidos. Dessa
forma, as únicas coisas que a mente pode contemplar de forma imediata são as
idéias; e, por isso, o nosso conhecimento só pode se relacionar com elas. Só
podemos conhecer as nossas idéias.
Mas e a verdade? De que nos serve o processo de percepção do mundo,
de criação de idéias, de relações, de reflexões; de que nos serve o nosso
conhecimento se não for para criar verdades com as quais possamos nos orientar
e viver em meio ao que conhecemos?
Para Locke, a verdade está intimamente ligada às proposições. Uma
proposição é uma “união ou separação” de sinais (palavras ou idéias). Podem ser
mentais, quando os sinais forem idéias, e verbais, quando os sinais forem
palavras.
As verdades, como as proposições, podem ser mentais, no caso de
proposições mentais verdadeiras, e
podem ser verbais, no caso de proposições verbais
verdadeiras. E uma proposição é verdadeira quando existe coerência entre as
relações dos sinais e as relações dos objetos que estes sinais representam. Se
a proposição faz uma relação entre os sinais que condiz com a relação de fato
existente entre os objetos representados, então esta proposição é verdadeira.
Locke identifica dois
tipos de proposições: as mentais e as verbais. E identifica três tipos de
verdades: as mentais, as verbais e as reais.
As verdades mentais
dizem respeito às proposições mentais.
As verdades verbais e
as verdades reais dizem respeito às proposições verbais. As primeiras se
constituem quando simplesmente há coerência lógica entre o que está expresso
por palavras e a relação que existe entre as idéias, independente de haver
alguma relação entre as idéias e a realidade. As segundas se constituem quando,
além de haver coerência entre a proposição verbal e as idéias, estas,
necessariamente têm relação com o que existe na natureza.
Definido o que seja a verdade, ou as verdades, vez que existem vários
tipos delas, inclusive outros que não foram objetos desse estudo, passamos ao
critério de verdade utilizado por Locke, utilizando novamente as suas próprias
palavras, que se constituem no melhor argumento que podemos recorrer:
“A verdade é o registro em palavras do
acordo ou desacordo das idéias tal como ele é. A falsidade é o registro em
palavras do acordo ou desacordo das idéias diferentemente do que ele é. E até
onde estas idéias assim designadas pelos sons concordarem com os seus
arquétipos, só até aí a verdade é real. O conhecimento dessa verdade consiste
em saber quais são as idéias que as palavras significam e em perceber o acordo
ou desacordo destas idéias conforme é designado por essas palavras.”[26]
Tais são as considerações que julgamos pertinentes à missão proposta:
a de fazer um vôo panorâmico sobre o mundo das idéias “Lockeanas” acerca da sua “verdade”.
9- Bibliografia
1-
LOCKE, John, “Ensaio sobre o
entendimento humano”, Editora Fundação
Calouste Gulbenkian.
2-
LOCKE, John, “Ensaio acerca do
entendimento humano”, Coleção Os pensadores (Tradução baseada na edição
abreviada do Ensaio por A.D. Woozley em 1969), Editora Nova Cultural.
3-
ROVIGHI, Sofia Vanni, “História
da filosofia moderna - da Revolução
científica a Hegel”, Edições Loyola.
4-
CORBISIER, Roland, “Introdução à
filosofia – Tomo II – Parte quarta – Empirismo Inglês”, Editora Civilização
Brasileira.
5-
JAPIASSÚ, Hilton e MARCONDES,
Danilo, “Dicionário básico de filosofia”, Jorge Zahar Editor.
6-
ABBAGNANO, Nicola, “Dicionário de
filosofia”, Editora Martins Fontes.
7-
HUISMAN, Denis, “Dicionário dos
filósofos”, Editora Martins Fontes.
8-
HESSEN, Johannes, “Teoria do
conhecimento”, Editora Armênio Amado.
9-
REALE, Giovanni e ANTISERI,
Dario, “História da filosofia vol. II”, Edições Paulinas.
10- MARTINS FILHO, Ives Gandra, “Manual esquemático de história da
filosofia”, Editora Ltr.
11- YOLTON, John W. , “Dicionário Locke”, Jorge Zahar Editor.
__________________________
[1]
Introdução à Filosofia – Tomo II – Parte quarta – Empirismo Inglês – Roland
Corbisier (editora Civilização Brasileira ) pg 133.
[2] Ensaio
acerca do entendimento humano, Livro II, Capítulo I, 1.
[3]
Retirado da obra História da Filosofia moderna – Sofia Vanni Rovighi (edições
loyola) pg 239
[4] Ensaio
acerca do entendimento humano, Livro IV, Capítulo I, 2.
[5] Ensaio
acerca do entendimento humano, Livro IV, Capítulo I, 4.
[6] Ensaio
acerca do entendimento humano, Livro IV, Capítulo I, 2.
[7] Ensaio
sobre o entendimento humano, Livro IV,
Capítulo I, 5. (pg 721)
[8] Ensaio
acerca do entendimento humano, Livro IV, Capítulo I, 6.
[9] Ensaio
acerca do entendimento humano, Livro IV, Capítulo I, 7.
[10] Ensaio
sobre o entendimento humano, Livro IV, capítulo V, 1.
[11]Ensaio
sobre o entendimento humano, Livro IV, capítulo V, 1.
[12] Ensaio
sobre o entendimento humano, Livro IV, capítulo V, 2.
[13] A nosso
ver, o argumento por nós exposto – o de que, no ato mesmo da percepção das
idéias, de seu nascimento, já existe uma formulação de juízo – constitui-se em prova evidente do fato de que
podemos suspeitar que as idéias não estejam intimamente ligadas à realidade.
Além desses, muitos outros argumentos podem ser somados à essa suspeita, porém,
não se constituem relevantes ao âmago de nossa atual análise.
[14] Ensaio
sobre o entendimento humano, Livro IV, capítulo V, 2.
[15] Em
sintonia com o pensamento de Locke, podemos perceber que deste fato pode
derivar os infindáveis erros de pensamento humano no decorrer de nossa
história, os infinitos paradoxos, as infindáveis discussões sobre “os sexos dos
anjos” que tem ocupado os “grandes filósofos”, ao tentarem, por séculos e
séculos, um refutando o outro, descobrir quem nasceu primeiro, se foi o ovo, ou
a galinha, ou, ainda, descobrir “qual
será o segredo de tostines”(tostines vende mais porque está sempre fresquinho,
ou está sempre frenquinho porque vende mais?). Toda essa discussão inútil pode
derivar do fato de que usamos palavras (que não guardam relação segura com as
idéias, quanto mais com a realidade), como meio de raciocínio. E pode-se
frisar: Palavras muito mal utilizadas.
[16] Elas
são as proposições formadas por idéias, e não por palavras, e elas ocorrem em
nossos pensamentos, mesmo que raramente, pois não é difícil atentar para o fato
que às vezes, quase nunca, estamos pensando ou imaginando algo, sem o uso de
palavras. Tais proposições são raras em nosso pensamento moderno pelo fato de
termos sido “programados” desde a infância a pensarmos por meio de palavras, e
a idolatrar o raciocínio, em detrimento da intuição.
[17] Ensaio
sobre o entendimento humano, Livro IV, capítulo V, 5.
[18] Só
poderíamos transmiti-la por telepatia, na hipótese de sermos capazes.
[19] Ensaio
sobre o entendimento humano, Livro IV, capítulo V, 6.
[20] Ensaio
sobre o entendimento humano, Livro IV, capítulo V, 6.
[21] Para
nosso desespero!
[22] Ensaio
sobre o entendimento humano, Livro IV, capítulo V, 8.
[23] Ensaio
sobre o entendimento humano, Livro IV, capítulo V, 9.
[24] Faço
uso dessa analogia para facilitar a compreensão, não significando
necessariamente que Locke a utilize ou com ela concorde. Em David Hume a
palavra “impressão” se faz mais significativa, e, é claro, é utilizada com
outra conotação.
[25] Pois,
como visto, existem várias espécies de idéias por ele enumeradas. E, dentre
estas, as idéias complexas derivam das simples. Ou seja, as idéias complexas
são representações de idéias simples, são “sinais” destas.
[26] Ensaio
sobre o entendimento humano, Livro IV, capítulo V, 9.