terça-feira, 7 de março de 2017

O problema da verdade em Locke

Por Edson José Travassos Vidigal


Roteiro:
1.     Objetivo
2.     Palavras chaves ao entendimento do empirismo de John Locke
3.     Introdução
4.     Algumas considerações sobre John Locke
5.     Algumas considerações sobre as Idéias em Locke
6.     Algumas considerações sobre o Conhecimento em Locke
7.     Algumas considerações sobre a Verdade em Locke
8.     Algumas considerações finais
9.     Bibliografia


1-     Objetivo
O presente trabalho se propõe a tecer considerações introdutórias ao pensamento empírico de John Locke, visando um primeiro entendimento da concepção deste filósofo acerca do que seja “a verdade”.
Para tanto, adota como referência à investigação que se propõe, o livro IV- “Do conhecimento e da probabilidade”, da obra  “ Ensaio acerca do entendimento humano” de autoria de Locke.
Cabe ressaltar que se trata de um trabalho de natureza expositiva, propedêutico ao pensamento de Locke. Apenas uma primeira leitura de sua concepção sobre o tema. Leitura essa que, não tendo a pretensão de ser original ou exaustiva; busca, antes, despertar e fomentar o interesse pela obra deste importante pensador inglês.

2-    Palavras chaves ao entendimento do empirismo de  John Locke
Idéia, sensação, reflexão, modo, substância, relação, conhecimento, sinal, verdade, proposição, juízo, abstração, palavra, existência.

3-    Introdução
Tendo em vista o objeto de nossa empresa, investigar sobre “o problema da verdade em Locke”, cabe a nós, antes de mais nada, especificarmos o que estamos procurando.
Analisando nosso tema, começamos por questionar o que seria “o problema da verdade”.
A teoria do conhecimento tradicional toma o problema da verdade como o questionamento acerca de como podemos saber se um determinado juízo é verdadeiro ou não. Essa questão é chamada de “o critério de verdade”. E, sem sombra de dúvida, para resolvermos esta questão, precisamos antes ter uma definição clara do que seja “verdade”.
Temos então esclarecido o objeto de nossa investigação, que é entendermos o que é a verdade para John Locke e qual é o critério que este filósofo inglês adota para considerar um juízo verdadeiro, ou não.
Para obtermos sucesso em nossa missão, é necessário que façamos algumas considerações prévias de índole introdutória, sem as quais se tornará difícil o entendimento do que seja a verdade para Locke, ou de qual é o critério de verdade que ele adota. É necessário contextualizar, em sua vida e obra, em seus pensamentos, em sua forma de ver o mundo, as respostas que ele nos dá a tais questionamentos.

4-    Algumas considerações sobre John Locke
Nascido em 29 de agosto de 1632, em Pensford, vilarejo do Sommerset, perto de Bristol, John Locke era filho de uma família de comerciantes. Sofria de problemas respiratórios, os quais, de origem familiar, já haviam comprometido a saúde de sua mãe e de seu irmão, ambos falecidos com tuberculose, quando John Locke ainda era jovem. A preocupação com sua saúde, que sempre foi precária, o acompanhou por toda a vida.
Locke viveu em uma Inglaterra conturbada por guerras civis. Seu pai se alistou no exército do Parlamento e, graças à interferência de seu superior, o Coronel Popham, Lock estudou como bolsista na Universidade de Westminster e, posteriormente, também como bolsista, em Oxford no “Christ Church College”, o mais famoso daquela universidade.
Lá, estudou a filosofia de Aristóteles, a única ensinada em Oxford. Foi diplomado Bacharel em Artes e lecionou grego, retórica e filosofia moral por algum tempo.
 Após esse período, se dedicou à medicina. Foi médico e conselheiro de Lord Ashley, conde de Shaftesbury, que o contratou após Locke lhe ter salvado a vida por meio de  uma cirurgia.
A conturbação política de seu tempo e a sua saúde debilitada o levaram a viver entre a França, a Inglaterra e a Holanda. Por fim, estabeleceu-se definitivamente em seu País natal até a sua morte, em 28 de setembro de 1704, “enquanto Lady Masham lhe fazia uma leitura.” [1]
Em seus 72 anos de vida, produziu várias obras, dentre as quais se destacam: Dois tratados sobre o Governo, Carta sobre a tolerância, Elementos de filosofia natural e Ensaio sobre o entendimento humano.
É considerado o fundador do empirismo moderno, corrente filosófica que prega ser a experiência a única fonte do conhecimento humano. Não existem idéias inatas. A consciência cognoscível tira todos os seus conteúdos da experiência. O espírito humano nasce vazio, como uma tábula rasa, e, no decorrer de suas experiências, vai preenchendo este vazio com conhecimento.
Toda a sua obra é coesa e coerente, caracterizando-se fundamentalmente no empirismo que defende. Mas é no Ensaio acerca do entendimento humano que Locke expõe brilhantemente suas idéias acerca de seu empirismo e suas conseqüências na área da teoria do conhecimento.
O “Ensaio sobre o entendimento humano” se divide em quatro livros: O primeiro nega os princípios e as idéias inatas, o segundo trata das idéias, o terceiro das palavras e o quarto do conhecimento e da probabilidade.

5-    Algumas considerações sobre as idéias em Locke
“Todo homem tem consciência de que pensa, e que quando está pensando sua mente se ocupa de idéias”[2]. Assim Locke inicia sua investigação sobre as idéias no Livro II de sua obra. Deixa claro que, já que a mente é uma folha em branco, como já havia provado no livro anterior, as idéias necessariamente deveriam vir de algum outro lugar, que não da própria mente. E este lugar é a experiência. Todo o nosso conhecimento está fundado na experiência, seja ela experiência externa, sensorial, seja ela interna, reflexiva. Todas as nossas idéias derivam de uma dessas duas formas de experiência.
Segundo Locke, existem idéias simples e idéias complexas. As idéias simples se dividem em idéias de sensação, de reflexão e de sensação e de reflexão. Por sua vez as de sensação se subdividem em “de um só sentido” (qualidades secundárias) e “de diversos sentidos” (qualidades primárias). As idéias complexas se dividem em modos, substâncias e relações. Os modos se dividem em simples e mistos, sendo os simples subdivididos em “dos objetos de sensação” e “dos objetos de reflexão”. As substâncias se subdividem em corpóreas, espirituais e Deus.
Pode-se melhor visualizar tais distinções no seguinte esquema[3]:


As idéias simples nascem da experiência externa sensorial, como a idéia de quente, e da experiência interna, a reflexão, como no caso da idéia de vontade. Podem ainda nascer da sensação e da reflexão, como a idéia de causalidade.
Já as idéias complexas, são compostas por idéias simples, como a idéia de ouro, que reúne diversas idéias simples como as de ser amarelo, brilhante, maleável etc.
Locke sistematiza todo um processo de conhecimento e geração de idéias, bem como as classifica e as analisa no decorrer do Livro II. Mas o que nos interessa neste estudo é que elas se constituem na representação da realidade em nossa mente. A realidade não entra em contato direto com nossa mente, ao contrário, ela entra em contato mediante os sentidos, que geram idéias. Mesmo as idéias geradas por reflexão são, em última análise, provenientes de nossos sentidos, pois, a reflexão é feita baseada em idéias originadas de nossos sentidos. Assim, nossa mente não é capaz de ter contato com nada além das idéias, que são representações das sensações obtidas por nossos sentidos.

6-    Algumas considerações sobre o conhecimento em Locke
O conhecimento, para Locke, “nada mais é que a percepção da conexão e acordo, ou desacordo e rejeição, de quaisquer de nossas idéias” [4]. Locke afirma que, já que os únicos objetos que a mente pode contemplar de forma imediata são as idéias, sejam as obtidas pela sensação, sejam as obtidas pela reflexão, é evidente que o nosso conhecimento só pode se relacionar com elas. Assim, o conhecimento existe quando há a percepção da conexão ou da rejeição de determinadas idéias. Se afirmamos que branco não é preto, o que fazemos nada mais é do que percebermos a discordância entre essas duas idéias, a rejeição entre elas. Locke chama atenção para o fato de que, apesar de podermos imaginar, supor, advinhar, ou acreditar em determinados pensamentos, isso não se trata de conhecimento. Ao contrário, estamos dele distante se não houver a percepção da relação entre idéias acima exposta.
De fato, se através de nossos sentidos é que vemos e conhecemos o mundo exterior a nós, e o resultado dessa mediação se apresenta na forma de nossas idéias; se, ao nascermos, somos uma folha de papel em branco onde serão impressas as idéias obtidas pelos nossos sentidos e, ainda, outras, obtidas pela nossa reflexão; nada mais coerente do que perceber que o nosso conhecimento está restrito ao que está escrito em nossa folha de papel, em nossa mente. E o que está escrito em nossa folha de papel são as idéias, os dados que dispomos sobre nós e o mundo exterior. Assim, sendo as idéias os dados que dispomos imediatamente; o processamento desses dados, as relações que criarmos ou identificarmos entre elas, é que se constitui em nosso conhecimento.
Locke, objetivando explicar melhor o que seria este “ acordo ou desacordo” entre idéias, divide-os em quatro tipos:
1-    Identidade ou diversidade
2-    Relação
3-    Coexistência ou conexão necessária
4-    Existência real
O primeiro tipo de “acordo ou desacordo”, qual seja,  a identidade ou diversidade, constitui-se no primeiro ato da mente, que ocorre no momento da percepção das idéias, quando, “na medida em que as percebe, sabe o que cada uma é, e por este meio percebe também suas diferenças, e que uma não é a outra”[5]. Locke enfatiza que este processo é tão absolutamente necessário que, sem ele, não poderia haver nenhum conhecimento, nenhum raciocínio, nenhuma investigação, nenhuma imaginação e nenhum pensamento distinto. Diz ainda que este primeiro “acordo ou desacordo” é sempre percebido pela mente à primeira vista.
Trata-se da percepção da identidade das idéias, ou, se analisarmos bem, da criação das próprias idéias. Tal percepção se faz justamente pelo processo de identificação do que é igual e do que é diferente. A própria identidade nasce da auteridade. Sem existir algo diferente, não se pode conceber uma identidade, que é a referência para o diferente. Sem o diferente, não faz sentido existir a referência. Assim, é absolutamente imprescindível que se encontre as diferenças a fim de que se identifique algo, que se crie a sua identidade. E isso é intrínseco à concepção de cada idéia, pois, sem essa operação não existiriam idéias, mas apenas um aglomerado de sensações indistintas, das quais não seria possível nem mesmo o ato da reflexão e consequente criação de outras idéias.
Podemos arriscar em  concluir que a percepção de “acordo ou desacordo” chamada por Locke de “identidade ou diversidade” é instintiva e intuitiva, e faz parte, mesmo, do nascimento das idéias em nossa mente. Além, é claro, de se constituir, desde já, em meio de futuras relações entre idéias com vistas à formulação de conhecimento. Neste momento, cabe uma reflexão: Já que a formação das próprias idéias, o nascimento de cada idéia,  já se constitui em  operação de juízo, em ato de distinguir a fim de identificar, usando a terminologia de Locke, em percepção do “acordo e desacordo” de “identidade ou diversidade”, então, seguindo o pensamento de Locke, não seria correto afirmar que as próprias idéias já se constituem em conhecimento? Claro que para respondermos afirmativamente a esta questão teríamos de interpretar a definição de conhecimento de Locke de forma mais ampla, já que, como visto, para Locke o conhecimento “nada mais é que a percepção da conexão e acordo, ou desacordo e rejeição, de quaisquer de nossas idéias[6] (grifo nosso).
O segundo tipo de “acordo e desacordo” que a mente percebe, segundo Locke, é a relação. “Uma vez que  todas as idéias distintas devem ser eternamente conhecidas como não sendo as mesmas, e como sendo universal e constantemente negadas umas das outras, não poderia haver nenhum meio de chegar a um conhecimento positivo, se nós não pudéssemos perceber nenhuma relação entre as nossas idéias, nem descobrir o acordo ou desacordo que elas mantêm umas com as outras nos diferentes modos de que o espírito se serve para as comparar.”[7] (grifo nosso)
Trata-se de criar relações entre as idéias, usando um determinado critério pré-definido por nossa mente para este fim. Por exemplo, podemos comparar a idéia de sol com a idéia de ouro, tomando como critério a cor. Assim, dizemos que o ouro e o sol são iguais em relação à sua cor. Esta é uma forma de criar uma relação entre as idéias que é fundada em um determinado aspecto da idéia, não em sua totalidade, pois, se cada idéia é única e distinta, como já visto, elas não podem ser iguais entre si. Todas teriam que ser diferentes, e essa seria a única relação que poderia existir entre elas. A partir da hora em que se estabelece um critério para a relação, como a cor, no exemplo dado, cria-se a possibilidade de existência de outras infindáveis relações entre as idéias, ou, sendo mais preciso, entre determinados aspectos das idéias.
O terceiro tipo de “acordo e desacordo” a ser encontrado em nossas idéias, diz Locke, é a coexistência ou não coexistência, no mesmo objeto. E Locke explica: “... quando nos manifestamos acerca do ouro, que é fixo, nosso conhecimento desta verdade  não comporta mais que isto, que fixidez, ou um poder para permanecer no fogo sem ser consumido. Isto importa numa idéia que sempre acompanha e é unida a este tipo particular de amarelo, peso, fusibilidade, maleabilidade e solubilidade em aqua régia, que faz nossa idéia complexa, designada pela palavra “ouro” [8]
Parece que Locke se refere à coexistência ou não de propriedades do objeto, de forma a defini-lo, e essa definição do objeto, através da percepção sobre a coexistência ou não de determinadas características, constituiria-se em conhecimento.
Finalmente, o quarto tipo de “acordo e desacordo” formulado por Locke com o objetivo de tornar claro o processo do conhecimento, é a Existência real atual concordando com qualquer idéia.
Parece que a existência real seria a relação entre a idéia e a realidade. Neste ponto, ao invés de desenvolver o quarto tipo de “acordo e desacordo”, Locke prefere concluir o tópico citando exemplos: “Assim, “azul não é amarelo” é identidade. “Dois triângulos sobre bases iguais entre duas paralelas são iguais” é relação. “Ferro é suscetível de impressões magnéticas” é coexistência. “Deus é” é existência real. Embora identidade e coexistência sejam realmente nada mais que relações, apesar disso, são meios tão peculiares de acordo e desacordo de nossas idéias que bem merecem ser considerados tópicos distintos, e não sob a relação em geral.”[9]
Traçados tais aspectos primeiros sobre o conhecimento para Locke, encontramo-nos aptos  a seguir ao próximo passo.

7-    Algumas considerações sobre a verdade em Locke
“ O que é a verdade? Eis uma pergunta antiga de séculos; e como toda a humanidade a procura, ou pretende procurar, não pode deixar de ser digno do nosso cuidado examinar em que ela consiste e assim familiarizarmo-nos com a sua natureza e observar como o espírito a distingue da falsidade[10](grifos nossos)
A proposta de Locke no início do capítulo entitulado “A verdade em geral”[11], é justamente averiguar em que a verdade consiste e, deste modo, adquirir familiaridade com a sua natureza. Locke se propõe, ainda, a observar de que modo a mente distingue a verdade da falsidade. Como que soubesse de nosso anseio e de nossa busca, Locke finalmente nos brinda com uma proposta irrecusável, a de nos responder diretamente a pergunta que, desde o início, norteia nossa peregrinação: “O que é a verdade para John Locke, e qual o critério de verdade que ele utiliza?”
Mas por que não fomos direto ao ponto desde o início de nossa empresa?
Simplesmente porque não podíamos nos furtar da companhia de nosso esguio filósofo inglês e de suas idéias esclarecedoras tanto ao espírito humano e seu entendimento, quanto à nossa investigação e ao nosso entendimento.
“Parece-me, então que a verdade não é outra coisa, segundo a significação própria da palavra, senão a união ou a separação de sinais, conforme as coisas significadas por elas concordem ou discordem entre si. A união ou separação de sinais aqui significada é o que nós chamamos por outro nome: proposição; de maneira que a verdade pertence propriamente só às proposições. Há duas espécies delas, a saber: mentais e verbais; como também há duas espécies de sinais de que nos servimos vulgarmente, a saber: as idéias e as palavras.”[12]  (grifos nossos)
A primeira questão que nos deparamos é: O que são os “sinais”? Locke nos diz que existem dois tipos de sinais, as palavras e as idéias. Analisando sua obra, podemos afirmar que os “sinais” são representações. Sua característica geral é a função significadora. Na verdade, as palavras, para Locke, não passam de representações das idéias. E as idéias, por sua vez, são representações das “coisas”. Assim, as palavras são “sinais” das idéias, que são “sinais” das coisas.
Mas há diferenças entre estes sinais. A maior e mais importante diferença é que as palavras são representações convencionais das idéias, por isso elas não significam necessariamente o conteúdo das idéias. Já as idéias não são representações convencionais das coisas, mas sim, representações naturais das coisas. De certa forma são universais, pois todos tendemos a receber praticamente as mesmas sensações dos objetos (É claro que tais afirmações podem ser questionadas, mas tais questionamentos não se fazem relevantes à nossa presente investigação). O surgimento das idéias é algo inerente ao processo cognitivo, é intuitivo e imediato, ao contrário do surgimento das palavras, que é algo construído mediante outros elementos e convenções externas. Se as palavras fossem diretamente ligadas às idéias de forma não convencional, todos nasceríamos falando a mesma língua. Mas não é isso o que, de fato, acontece.
Daí se percebe que; se podemos suspeitar que as idéias não estejam intimamente ligadas à realidade [13], e podemos ter certeza que as palavras, por sua vez, também não estão intimamente ligadas às idéias; é evidente que as palavras não guardam relação íntima com a realidade, ao contrário, estão longe dela, como em uma brincadeira de “telefone sem fio”, onde a mensagem original vai se deturpando e se perdendo durante o longo caminho que vai da origem da mensagem ao seu destino.
Voltando à análise da resposta de Locke sobre o que seria a verdade, ele diz que a união ou separação dos sinais a que se refere é o que nós chamamos de proposição, e que a verdade pertence propriamente somente às proposições. Diz ainda que “há duas espécies delas, a saber: mentais e verbais[14]. À primeira vista parece confuso se ele se refere a dois tipos de verdades ou a dois tipos de proposições. Mas logo adiante, no decorrer da leitura, percebe-se que existem dois tipos de proposições, as proposições mentais e as verbais, e consequentemente existem dois tipos de verdade, a verdade mental, e a verbal, haja vista que as verdades estão intimamente relacionadas  com as proposições.
Locke explica que é difícil tratar delas separadamente, pois é inevitável, ao tratar das proposições mentais, fazer-se uso de palavras; e, logo que isso aconteça, tais proposições mentais passam a ser proposições verbais. Chama a atenção até para o fato de que a maioria dos homens, senão todos, usam palavras ao invés de idéias ao formarem seus raciocínios[15]. Na verdade, Locke procura explicar que, apesar de ser difícil se explanar sobre as proposições mentais, e consequentemente sobre as verdades mentais, elas existem[16].
Adiante, Locke examina as duas espécies de proposições:
“ Mas para voltar a considerar em que consiste a verdade, digo que devemos observar duas espécies de proposições que somos capazes de formar:
Uma, as mentais, onde as idéias são juntas ou separadas no nosso entendimento, sem o uso das palavras, pelo espírito que percebe ou julga o seu acordo ou desacordo.
A outra, as verbais, que são as palavras, sinais das nossas idéias, juntas ou separadas em frases afirmativas ou negativas. E por esta maneira de afirmar ou negar, estes sinais formulados por sons são, por assim dizer, postos juntos ou separados uns dos outros. De maneira que uma proposição consiste em juntar ou separar os sinais; e a verdade consiste em juntar ou separar estes sinais conforme as coisas que eles significam concordam ou discordam.”[17]
Locke deixa claro o que seja uma proposição para ele. Uma proposição nada mais é do que juntar ou separar sinais (idéias ou palavras). Assim, em uma proposição verbal, poderemos usar as palavras “bola” e “liquido”, que são sinais que representam a idéia complexa de “bola” e a idéia simples de “líquido”. Então poderíamos montar a seguinte proposição verbal: “A bola é líquida”. Nossa proposição é justamente a junção de duas palavras (dois sinais que representam duas idéias). Uma proposição mental já seria impossível de ser transmitida em um texto[18], mas, em síntese, seria unir ou desunir duas idéias (sinais dos objetos reais).
Agora que sabemos o que é uma proposição, finalmente, chegaremos à verdade!
A verdade nada mais é do que uma proposição onde os seus “sinais” estão juntos ou separados conforme as coisas que eles representam concordem ou discordem entre si. A proposição que formulamos, “A bola é líquida”, apesar de ser, sim, uma proposição; não é uma proposição verdadeira, pois a idéia de “bola” não concorda com a idéia de “líquido”. A fim de ser verdadeira, teríamos que transformar nossa proposição em: “A bola não é líquida”.
A verdade acontece quando a relação (concordância ou discordância – junção ou separação) apresentada pelos sinais reflete, de fato, a relação entre as coisas que estão representadas por estes sinais.
Como visto, já que existem proposições mentais e proposições verbais, existem verdades mentais e verdades verbais.
“...E quando as idéias são assim juntas ou separadas no espírito, conforme essas idéias ou as coisas que significam concordam ou não concordam, isso é o que podemos chamar verdade mental.”[19]
Em outras palavras, verdade mental é quando a relação feita entre as idéias, pelo espírito, espelha, de fato, a relação existente entre as coisas na realidade. Ou quando a relação entre as idéias(sinais) espelha a relação entre outras idéias (objetos representados por aqueles sinais), no caso de se estar formulando proposições de idéias acerca de outras idéias.
É importante frisar que as verdades mentais, formadas por proposições mentais, apesar de serem as mais difíceis de serem identificadas ou exemplificadas, são as mais simples, pois, para haver uma verdade verbal, basta que a proposição formada por idéias (proposição mental) espelhe a relação entre os objetos reais representados pelas idéias em questão. Assim, se eu faço, sem o auxílio de palavras, a seguinte proposição mental: “Uma [idéia de bola] não é [ídéia de líquido]”, essa proposição mental é uma verdade mental, pois, efetivamente, na realidade, o objeto que chamamos de bola não tem a característica que chamamos de liquidez. É um pouco abstrata demais essa explicação, mas é a melhor que pudemos dar no momento.
“Mas a verdade das palavras é qualquer coisa mais; é o afirmar ou negar as palavras umas das outras, consoante as idéias que elas significam concordam ou discordam; e esta verdade é ainda dupla: ou puramente verbal e inútil (dela falarei no capítulo VIII) ou real e instrutiva; e é ela que se refere ao conhecimento real de que falamos.”[20]
As verdades das palavras são mais complicadas[21]. As palavras, como visto, não necessariamente representam uma existência real. E, mais, podemos imaginar coisas que não existem na realidade. Assim, posso imaginar um unicórnio e dizer que “todos os unicórnios são animais”. Esta seria uma proposição verbal verdadeira, assim como se eu falasse que “todos os homens são animais”. Elas são igualmente verdadeiras na medida em que seus sinais (no caso as palavras) foram relacionados coerentemente com as relações apresentadas de fato entre as idéias por eles representadas(as idéias de unicórnio, de homem e de animal).
Como visto no exemplo acima, se a verdade verbal nada mais é do que afirmar ou negar as palavras umas das outras, consoante as idéias que elas significam concordam ou discordam, então essa verdade não serve para nada, pois a proposição verbal “todos os unicórnios são animais” é uma verdade verbal, incontestavelmente. Mas unicórnios nem ao menos existem! Então o que uma verdade dessas nos vale se não tem relação alguma com a realidade?
Locke resolve esse problema explicando que, quanto às verdades das palavras, existem dois tipos: as verdades puramente verbais, como é o caso da verdade de nosso unicórnio, e as verdades reais, que acontecem quando as idéias representadas por nossas palavras em nossa proposição, de fato, guardam relação com a realidade.
“... As proposições contêm verdades reais quando os sinais de que se compõem estão unidos segundo convém às nossas idéias e quando estas são tais que nós as sabemos capazes de existir na natureza...”[22]
Esta é a explicação de Locke para as “verdades reais”. Sem embargos, para haver uma verdade real, é necessário, primeiro, que as palavras guardem relação com as suas idéias respectivas; depois, que as relações formuladas por palavras na proposição verbal guardem correspondência com as relações que existem de fato entre as idéias representadas por estas palavras; e, por último, mas não menos importante, que as idéias representadas na proposição verbal sejam tais, que possamos saber que existam, de fato, na natureza.
Cumpridos todos estes requisitos, estamos de frente a uma verdade real.
Não satisfeito, Locke vai além:
“A verdade é o registro em palavras do acordo ou desacordo das idéias tal como ele é. A falsidade é o registro em palavras do acordo ou desacordo das idéias diferentemente do que ele é. E até onde estas idéias assim designadas pelos sons concordarem com os seus arquétipos, só até aí a verdade é real. O conhecimento dessa verdade consiste em saber quais são as idéias que as palavras significam e em perceber o acordo ou desacordo destas idéias conforme é designado por essas palavras.”[23]
Locke, após esclarecer o que seria a verdade em geral, e, ainda, como fazer a distinção entre a verdade e a falsidade, continua em sua obra investigando outros aspectos do conhecimento e outras espécies de verdade além daquelas já estudadas, que constituem, nas suas palavras, o seu “rigoroso sentido”. Mas tais investigações se constituem demasiado amplas para caberem em nosso limitado projeto de traçar considerações iniciais ao seu pensamento, e à sua “verdade”.

8-    Algumas considerações Finais
Como visto, Locke acredita que nascemos como uma folha em branco, sem nada já impresso. No decorrer de nossas experiências, sejam físicas (sensoriais), ou sejam mentais, vamos adquirindo impressões[24] em nossa folha em branco.
A essas impressões ele chama de “idéias”. Estas “idéias” são “sinais”, representações da realidade ou de outras idéias[25]. A idéia de ouro, por exemplo, é uma idéia complexa que deriva de várias outras simples, como o brilho metálico, a cor amarela, etc. Assim, a idéia de ouro é um sinal que representa outras idéias simples, que por sua vez, são sinais que representam as  qualidades do  objeto real aqui chamado por nós de ouro.
Já as palavras são também “sinais”, mas que representam as idéias. As palavras, ao contrário das idéias, não são naturais, mas conceituais, e por isso não guardam necessariamente ligação com as idéias.
Para Locke, o conhecimento nada mais é do que a conexão de acordo ou desacordo entre as idéias, ou, dito de outra forma, a relação que fazemos entre elas. Ora, se tudo nos provém dos sentidos, e o que os sentidos captam é convertido em idéias, é evidente que nossa mente não tem contato direto e imediato com a realidade. Nossa mente entra em contato com a realidade por meio dos sentidos, que nos mostram a realidade, transformado-a em idéias. Então, entre nosso espírito e a realidade existem as idéias e os sentidos. Dessa forma, as únicas coisas que a mente pode contemplar de forma imediata são as idéias; e, por isso, o nosso conhecimento só pode se relacionar com elas. Só podemos conhecer as nossas idéias.
Mas e a verdade? De que nos serve o processo de percepção do mundo, de criação de idéias, de relações, de reflexões; de que nos serve o nosso conhecimento se não for para criar verdades com as quais possamos nos orientar e viver em meio ao que conhecemos?
Para Locke, a verdade está intimamente ligada às proposições. Uma proposição é uma “união ou separação” de sinais (palavras ou idéias). Podem ser mentais, quando os sinais forem idéias, e verbais, quando os sinais forem palavras.
As verdades, como as proposições, podem ser mentais, no caso de proposições mentais verdadeiras, e podem ser verbais, no caso de proposições verbais verdadeiras. E uma proposição é verdadeira quando existe coerência entre as relações dos sinais e as relações dos objetos que estes sinais representam. Se a proposição faz uma relação entre os sinais que condiz com a relação de fato existente entre os objetos representados, então esta proposição é verdadeira.
Locke identifica dois tipos de proposições: as mentais e as verbais. E identifica três tipos de verdades: as mentais, as verbais e as reais.
As verdades mentais dizem respeito às proposições mentais.
As verdades verbais e as verdades reais dizem respeito às proposições verbais. As primeiras se constituem quando simplesmente há coerência lógica entre o que está expresso por palavras e a relação que existe entre as idéias, independente de haver alguma relação entre as idéias e a realidade. As segundas se constituem quando, além de haver coerência entre a proposição verbal e as idéias, estas, necessariamente têm relação com o que existe na natureza.
Definido o que seja a verdade, ou as verdades, vez que existem vários tipos delas, inclusive outros que não foram objetos desse estudo, passamos ao critério de verdade utilizado por Locke, utilizando novamente as suas próprias palavras, que se constituem no melhor argumento que podemos recorrer:
“A verdade é o registro em palavras do acordo ou desacordo das idéias tal como ele é. A falsidade é o registro em palavras do acordo ou desacordo das idéias diferentemente do que ele é. E até onde estas idéias assim designadas pelos sons concordarem com os seus arquétipos, só até aí a verdade é real. O conhecimento dessa verdade consiste em saber quais são as idéias que as palavras significam e em perceber o acordo ou desacordo destas idéias conforme é designado por essas palavras.”[26]
Tais são as considerações que julgamos pertinentes à missão proposta: a de fazer um vôo panorâmico sobre o mundo das idéias “Lockeanas”  acerca da sua “verdade”.

9-    Bibliografia
1-    LOCKE, John, “Ensaio sobre o entendimento humano”,  Editora Fundação Calouste Gulbenkian.
2-    LOCKE, John, “Ensaio acerca do entendimento humano”, Coleção Os pensadores (Tradução baseada na edição abreviada do Ensaio por A.D. Woozley em 1969), Editora Nova Cultural.
3-    ROVIGHI, Sofia Vanni, “História da filosofia moderna  - da Revolução científica a Hegel”, Edições Loyola.
4-    CORBISIER, Roland, “Introdução à filosofia – Tomo II – Parte quarta – Empirismo Inglês”, Editora Civilização Brasileira.
5-    JAPIASSÚ, Hilton e MARCONDES, Danilo, “Dicionário básico de filosofia”, Jorge Zahar Editor.
6-    ABBAGNANO, Nicola, “Dicionário de filosofia”, Editora Martins Fontes.
7-    HUISMAN, Denis, “Dicionário dos filósofos”, Editora Martins Fontes.
8-    HESSEN, Johannes, “Teoria do conhecimento”, Editora Armênio Amado.
9-    REALE, Giovanni e ANTISERI, Dario, “História da filosofia vol. II”, Edições Paulinas.
10- MARTINS FILHO, Ives Gandra, “Manual esquemático de história da filosofia”, Editora Ltr.
11- YOLTON, John W. , “Dicionário Locke”, Jorge Zahar Editor.
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[1] Introdução à Filosofia – Tomo II – Parte quarta – Empirismo Inglês – Roland Corbisier (editora Civilização Brasileira ) pg 133.
[2] Ensaio acerca do entendimento humano, Livro II, Capítulo I, 1.
[3] Retirado da obra História da Filosofia moderna – Sofia Vanni Rovighi (edições loyola) pg 239
[4] Ensaio acerca do entendimento humano, Livro IV, Capítulo I, 2.
[5] Ensaio acerca do entendimento humano, Livro IV, Capítulo I, 4.
[6] Ensaio acerca do entendimento humano, Livro IV, Capítulo I, 2.
[7] Ensaio sobre o  entendimento humano, Livro IV, Capítulo I, 5. (pg 721)
[8] Ensaio acerca do entendimento humano, Livro IV, Capítulo I, 6.
[9] Ensaio acerca do entendimento humano, Livro IV, Capítulo I, 7.
[10] Ensaio sobre o entendimento humano, Livro IV, capítulo V, 1.
[11]Ensaio sobre o entendimento humano, Livro IV, capítulo V, 1.
[12] Ensaio sobre o entendimento humano, Livro IV, capítulo V, 2.
[13] A nosso ver, o argumento por nós exposto – o de que, no ato mesmo da percepção das idéias, de seu nascimento, já existe uma formulação de juízo –  constitui-se em prova evidente do fato de que podemos suspeitar que as idéias não estejam intimamente ligadas à realidade. Além desses, muitos outros argumentos podem ser somados à essa suspeita, porém, não se constituem relevantes ao âmago de nossa atual análise.
[14] Ensaio sobre o entendimento humano, Livro IV, capítulo V, 2.
[15] Em sintonia com o pensamento de Locke, podemos perceber que deste fato pode derivar os infindáveis erros de pensamento humano no decorrer de nossa história, os infinitos paradoxos, as infindáveis discussões sobre “os sexos dos anjos” que tem ocupado os “grandes filósofos”, ao tentarem, por séculos e séculos, um refutando o outro, descobrir quem nasceu primeiro, se foi o ovo, ou a galinha, ou, ainda, descobrir  “qual será o segredo de tostines”(tostines vende mais porque está sempre fresquinho, ou está sempre frenquinho porque vende mais?). Toda essa discussão inútil pode derivar do fato de que usamos palavras (que não guardam relação segura com as idéias, quanto mais com a realidade), como meio de raciocínio. E pode-se frisar: Palavras muito mal utilizadas.
[16] Elas são as proposições formadas por idéias, e não por palavras, e elas ocorrem em nossos pensamentos, mesmo que raramente, pois não é difícil atentar para o fato que às vezes, quase nunca, estamos pensando ou imaginando algo, sem o uso de palavras. Tais proposições são raras em nosso pensamento moderno pelo fato de termos sido “programados” desde a infância a pensarmos por meio de palavras, e a idolatrar o raciocínio, em detrimento da intuição.
[17] Ensaio sobre o entendimento humano, Livro IV, capítulo V, 5.
[18] Só poderíamos transmiti-la por telepatia, na hipótese de sermos capazes.
[19] Ensaio sobre o entendimento humano, Livro IV, capítulo V, 6.
[20] Ensaio sobre o entendimento humano, Livro IV, capítulo V, 6.
[21] Para nosso desespero!
[22] Ensaio sobre o entendimento humano, Livro IV, capítulo V, 8.
[23] Ensaio sobre o entendimento humano, Livro IV, capítulo V, 9.
[24] Faço uso dessa analogia para facilitar a compreensão, não significando necessariamente que Locke a utilize ou com ela concorde. Em David Hume a palavra “impressão” se faz mais significativa, e, é claro, é utilizada com outra conotação.
[25] Pois, como visto, existem várias espécies de idéias por ele enumeradas. E, dentre estas, as idéias complexas derivam das simples. Ou seja, as idéias complexas são representações de idéias simples, são “sinais” destas.
[26] Ensaio sobre o entendimento humano, Livro IV, capítulo V, 9.